21.9.11

A dona da floricultura

Miúda, olhos vivos, dinâmica. A dona da floricultura era dessas mulheres que aparentam ter bem menos idade que indicam seus documentos, e mesmo sabendo disso, ainda assim você se espantaria se soubesse quantos anos ela tem de tão bonita.

Não que beleza seja sinal de juventude, ela bem sabia disso, mas hoje beleza derivar de juventude é pressuposto universal. Enfim, a dona da floricultura é bonita. Os mais de 20 anos trabalhando com flores renderam a ela uma delicadeza única. E esses mesmos anos deram a ela um quase-poder de prever o futuro só de olhar para as pessoas.

Claro que não foi de uma hora para outra, assim, de repente. No início ela só queria tentar adivinhar o que cada pessoa que entrava na sua loja estava precisando.

O rapaz que entrava todo sem jeito, perguntando de rosas vermelhas, provavelmente estaria comprando flores pela primeira vez para a namorada. E provavelmente ele nem sabia o nome de outra flor, e havia escolhido vermelho porque é a cor da paixão.

E a mulher com pressa, que chega no fim da tarde, com os filhos recém-saídos da escola, carregando bolsa e agenda, com cara de cansaço e mau humor, que vai direto para as orquídeas? Com certeza é aniversário da sogra, o marido esqueceu e sobrou para ela comprar o presente da mulher. Então ela vai direto nas orquídeas, que a sogra sabe que são caras e refinadas, e não perde tempo com isso. Afinal, a velha vai achar lindo o cuidado que o filho teve em escolher cuidadosamente flores tão lindas.

As duas moças que entram e ficam perdidas, olhando que flor que combina com que vaso, que combina com que cartão, que combina com que chocolate, que combina com que bichinho de pelúcia e que combinam com o quanto elas combinaram que podiam pagar, na certa são irmãs escolhendo presente para a mãe. E mais: é bem possível que essa era a primeira vez que elas pagariam pelo presente sem a ajuda do pai. Talvez o pai ainda fosse comprar um presente e dar para elas entregarem à mãe. Talvez ele até pedisse para que elas comprassem o que quisessem para a mãe que ele pagaria. Mas elas queriam sentir o gosto de poder pagar pelo que escolheram.

Tinha também os eventos que ela decorava. Aniversários, batizados, festas de empresas, premiações, bodas, hotéis. Não eram só as flores, mas os vasos, pedestais, cor de tapete, toalha de mesa, arranjo, folhagem, ramalhetes para homenagens, igrejas, salões. Cada tipo de evento pedia um tipo de decoração, uma cor específica, sóbria, alegre, romântica, elegante.

E, claro, tinha os casais. Tinha os arrojados, que queriam materiais diferentes em composições inovadoras, às vezes até sem flores. Os exigentes, que queriam tudo exatamente do jeito que pediam – ela dizia que os arquitetos eram os mais difíceis de atender, porque entendiam de decoração e queriam coisas diferentes, engessando o trabalho dela. Tinha os indecisos, com os quais ela tinha que conversar bastante para entender o tipo de relacionamento e dar uma direção para as opções que mais combinariam com eles. Os casais que iam separados, ela para escolher tudo e ele para pagar. Os casais que levavam a mãe, a sogra, a irmã, e cada escolha virava uma festa – ou uma discussão. Aqueles que não ligavam muito para tantos detalhes porque estavam muito apaixonados para enxergar alguma coisa além deles mesmos. E aqueles que queriam saber de todos os detalhes porque, afinal, uma festa de casamento mostra para a sociedade o quanto eles estão investindo neste relacionamento.

Tinha as mães dos casais que opinavam, exigiam, evitavam participar, apoiavam, reclamavam, pagavam, concordavam, discordavam, entendiam de tudo, não entendiam de nada.

As noivas calmas, nervosas, delicadas, espontâneas, desajeitadas, refinadas. Os noivos impacientes, participativos, carinhosos, ausentes, compreensivos.

Era essa combinação de clientes e situações diferentes que, junto com a delicadeza que se instalara naquela alma e a vivacidade que seu olhar demonstrava, que deram à dona da floricultura essa sensibilidade de prever algumas coisas. E quando aquele casal entrou pela primeira vez em sua floricultura dizendo que queria saber de decoração para o casamento deles, ela abriu um sorriso e convidou os dois, que tinham levado suas mães junto para ajudar a dar opinião, a subir as escadas e conversar com ela em seu escritório.

Eles subiram, conversaram com ela por mais ou menos meia hora. Já tinham algumas ideias, pediram outras a ela, e, trocando olhares confidentes, escolheram tudo tranquilamente, sem aparentar dúvida, sem nada tendo que descer goela abaixo de nenhum dos dois, com todas as opiniões ouvidas e ponderadas. Carinhosamente. Juntos. E no fim da conversa, com tudo quase certo, a dona da floricultura sorriu mais uma vez e disse aos dois: - Só de olhar, eu sei quando um casamento vai dar certo. E o de vocês, com certeza, só pode ser feliz, porque vocês são exatamente assim, feitos para dar certo.

Hoje, 30 anos depois, a noiva ainda conta essa história com o mesmo brilho no olhar com que segurou um buquê que a dona da floricultura fez para ela. E o noivo escuta essa história com o mesmo olhar carinhoso com que a olhava enquanto ela passava pelo corredor que a dona da floricultura decorou.

14.9.11

I can’t control my fingers, I cant’t control my brain.

Dispenso o sedativo e confesso que o título está invertido. Primeiro tentei controlar minha cabeça, e não consegui. Com a cabeça em total descontrole, este post é a prova de que falhei em controlar meus dedos. Mas Ramones dispensa comentários.

Claro que houve um período longo em que eu me mantive limpa. Nem precisei de tratamento, só parecia que eu não precisava mais dessas drogas de palavras, então não escrevia mais. Simples assim.

Até que, de repente minha cabeça começou a ficar perturbada de novo. Tentei não dar bola, fingir que não era comigo, que eu conseguia ser mais forte. Juntei todas as referências de auto-ajuda que tive saco de ler, mas quanto mais eu tentava contrair a síndrome da Polyana, mais irritada eu ia ficando. Conforme eu me agarrava a qualquer fio de esperança, mais nós iam se formando.

Aquelas tais pulguinhas que insistem em se instalar atrás das nossas orelhas foram se manifestando. Ora um, ora outra... até que todas começaram a gritar juntas, bem alto, e não era bem atrás da minha orelha, mas exatamente naquela curvinha acústica que faz a gente ouvir melhor, sabe?

Depois vieram meus demônios. Um de cada vez, chegando de mansinho, com cara de anjo, mas cheios de más intenções. Jogando com a minha mente, brincando com a realidade, flertando com meus defeitos...

Mas, mesmo com as pulgas e os demônios, eu ainda consegui me controlar. Tive noites bem difíceis, é verdade, tentando dormir enquanto algumas palavras, e até frases inteiras, ficavam rondando meus pensamentos. Comecei a pensar que uma recaída talvez não fosse tão ruim assim. Mas fui forte.

Fui muito forte. Até que aconteceu o que não podia. No fundo, eu sabia que era inevitável, que era só uma questão de tempo. Não sabia ao certo quanto ia demorar, quanto eu ia aguentar. Só tinha uma certeza inconfessável de que ia acontecer de novo. E aconteceu: vieram as pessoas.

Suas ideias, suas palavras, suas atitudes, suas desculpas, seus silêncios, suas caras e bocas, suas histórias, seus ensinamentos, suas qualidades, seus defeitos, seus desejos, suas decepções, seus rancores, suas saias-justas, suas piadas, seus trabalhos, seus orgulhos, suas perfeições. E eu fiquei só com meus dedos formigando, quase usando a força física para controlar esses 10 malditinhos. Só que eles eram 10, e eu uma só, com a cabeça já sem controle. Aí foi impossível continuar sem escrever aqui.

Meu nome é Marcela, tenho 30 anos, e estava limpa havia 1 ano, 7 meses e 18 dias.
Mas agora estou de volta.

Obs: tenho que fazer um agradecimento especial às pulgas e aos demônios. Obrigada por não me abandarem. Com vocês me sinto mais viva, mais eu.