13.10.11

Briga

Elas estavam mais do que com raiva. Elas estavam putas mesmo.

Uma parou bem de frente com a outra, as duas respirando alto, olhando no olho. Até que a primeira frase saiu:

- Você fez de novo! De novo!

- Eu sei...

- Sabe mesmo! Tanto sabe que já tinha prometido não cair na mesma besteira. Pensa que eu não lembro como foi da última vez? Você lá, arrependida, se sentindo idiota, sem conseguir entender como não tinha visto no que tudo aquilo ia dar. Suas atitudes, suas palavras, seu tom de voz...

- Não foi assim. Eu fiz o que tinha que ser feito. Alguém precisava falar. E eu não estava mais aguentando! Eu tinha que fazer. E dessa vez eu achei que ia ser diferente.

- Ah! Você achou que ia ser diferente? Por que seria diferente justo dessa vez, se todas as outras vezes foram exatamente iguais? O que você achou que ia mudar?

A raiva ia aumentando. O rosto das duas ia ficando cada vez mais vermelho.

- Eu sou a única pessoa no mundo que entende você, que enxerga a mesma coisa que você. Você sabe disso. Então você não devia falar assim comigo, devia tentar me entender melhor, ver que eu fiz o que achava melhor.

- Mas você devia pensar antes de sair dizendo as coisas.

- Eu pensei! Claro que eu pensei. Eu já tinha pensado em tudo um milhão de vezes, já estava cansada de pensar, pensar, pensar.

- Pensar, pensar... Pensou tudo errado, de novo. Pensou igual você pensou das outras vezes, e aí deu tudo errado, igual deu das outras vezes. Você mesmo fala que errar é humano e que insistir no erro é burrice... Você é insistente, hein!

- Não fala assim comigo. Você sabe que eu não sou burra!

- É mesmo. Você não é burra, é ingênua! Como pode? - Nossa, que raiva! - Não consigo me conformar com a sua estupidez. Não entra na minha cabeça você insistir em achar que as coisas vão mudar, que as pessoas vão pensar como você, que existe jeito pra esse mundo. Não tem jeito! NÃO TEM!

O grito abriu caminho para as lágrimas que ela fazia força para não deixar escorrer.

- Idiota, é isso que você é. Você acha que pensa, acha que sabe o que vai fazer, acha que pode prever as reações das pessoas, acha isso, acha aquilo, e se perde no meio do caminho. E pior: me deixa assim.

- Te deixo assim? E eu? Como você acha que eu fico? Eu me torturo o tempo todo passando e repassando toda conversa que tivemos, cada palavra que eu disse e ouvi, cada gesto. É uma tortura isso, sabia? Fico me perguntando se eu não devia ter falado mais. Ou talvez menos. Ou ter dado uma resposta diferente. Aliás, já pensei em um milhão de formas diferentes de falar e de não falar, de fazer e de não fazer, tudo que eu já falei, fiz e deixei de falar e de fazer.

Silêncio. A raiva ia se transformando em decepção, frustração, mantendo a vermelhidão no rosto. As sobrancelhas, a boca e as bochechas iam caindo, como se sentissem vergonha. Vergonha de toda a burrice que estava diante dela. Decepção por saber que, no fundo, ela já sabia o que ia acontecer e mesmo assim não fez nada para impedir. E pior, muito pior: frustração. Porque ela sabia que essa não seria a última vez.

Ela conhecia aquela pessoa que estava na sua frente. Sabia que, mesmo depois de tudo que ela tinha falado e ouvido, ela ia sofrer um tempo, e depois ia se acostumar com a dor e esquecer a frustração, e depois ia começar a ver de novo a beleza que ela achava que as coisas tinham, e depois ela ia de novo tentar consertar o que ela achava que estava errado, e depois tudo aquilo que estava acontecendo naquele momento ia acontecer de novo.

Então as duas, que se olhavam nos olhos, ao mesmo tempo baixaram a cabeça desviando do olhar inquisidor uma da outra, mesmo sabendo que as duas pensavam da mesma forma e que o olhar não seria inquisidor, e sim de dó. Na verdade, talvez por isso elas evitaram se olhar nos olhos novamente. O sofrimento já era o bastante, não havia necessidade de agravar tudo com o peso da pena.

Só mais um suspiro antes de se afastarem, e ela apagou a luz, saiu da frente do espelho e foi se deitar sozinha, com uma noite inteira pela frente para ficar se torturando, passando e repassando tudo que aconteceu.

7.10.11

Aftertaste

Amargo. Aquele amargo com um gostinho de ferro por causa do soco na boca, que me fez engolir um pouco de sangue enquanto a bile subia, no sentido contrário, provocando náusea.

Atordoada, minha única reação foi tentar segurar o vômito e o choro, ao mesmo tempo.

Apesar dos golpes suaves esporadicamente, eu não estava preparada para aquilo. Eu sei, a culpa do despreparo era toda minha, da minha cegueira opcional, da minha busca incansável de tapar o sol com a peneira, como dizem.

Aliás, a essa altura, a culpa já é minha amiga íntima. Ela e as dúvidas. As únicas que ficaram do meu lado depois da surra. Ficaram o tempo todo ali comigo, conversando entre elas, porque eu não tinha nem ânimo, nem força para falar nada.

- Será que não foi você mesma que provocou tudo isso?

- Você sabe como as coisas são, como as pessoas são, e mesmo assim continuou agindo da mesma maneira. Você devia ter pensado antes.

- Como você não percebeu que isso ia acontecer? Estava tudo na sua cara!

- Você é ingênua demais. Acha que todo mundo é bom. Você se esconde atrás do argumento de que isso é sinal de bondade, mas na verdade é sinal de burrice.

E elas não paravam de me metralhar com comentários que faziam cada vez mais sentido na minha cabeça, me deixando mais atordoada e com menos força.

Eu já estava ajoelhada, implorando em silêncio para que alguma boa alma me pegasse pela mão e me mostrasse que aquilo não tinha sido uma surra, e sim um abraço muito apertado, que eu é que tinha confundido tudo. Mas as pessoas passavam por mim e não me notavam ali no chão. As poucas que vinham até mim disfarçavam sua curiosidade mórbida com a oferta de um ombro.

Confesso que, mesmo sabendo disso, me vali dos ombros para tentar encontrar apoio, mas quando as palavras são vazias elas não podem suportar nada. Então o chão voltava a ser o meu lugar.

O gosto amargo da traição, o azedume da revolta comigo mesma, a cabeça erguida, não por satisfação, mas para tentar em vão que as lágrimas não escorram mostrando ao mundo minha vergonha. É isso que sobra quando a admiração se transforma em decepção.

21.9.11

A dona da floricultura

Miúda, olhos vivos, dinâmica. A dona da floricultura era dessas mulheres que aparentam ter bem menos idade que indicam seus documentos, e mesmo sabendo disso, ainda assim você se espantaria se soubesse quantos anos ela tem de tão bonita.

Não que beleza seja sinal de juventude, ela bem sabia disso, mas hoje beleza derivar de juventude é pressuposto universal. Enfim, a dona da floricultura é bonita. Os mais de 20 anos trabalhando com flores renderam a ela uma delicadeza única. E esses mesmos anos deram a ela um quase-poder de prever o futuro só de olhar para as pessoas.

Claro que não foi de uma hora para outra, assim, de repente. No início ela só queria tentar adivinhar o que cada pessoa que entrava na sua loja estava precisando.

O rapaz que entrava todo sem jeito, perguntando de rosas vermelhas, provavelmente estaria comprando flores pela primeira vez para a namorada. E provavelmente ele nem sabia o nome de outra flor, e havia escolhido vermelho porque é a cor da paixão.

E a mulher com pressa, que chega no fim da tarde, com os filhos recém-saídos da escola, carregando bolsa e agenda, com cara de cansaço e mau humor, que vai direto para as orquídeas? Com certeza é aniversário da sogra, o marido esqueceu e sobrou para ela comprar o presente da mulher. Então ela vai direto nas orquídeas, que a sogra sabe que são caras e refinadas, e não perde tempo com isso. Afinal, a velha vai achar lindo o cuidado que o filho teve em escolher cuidadosamente flores tão lindas.

As duas moças que entram e ficam perdidas, olhando que flor que combina com que vaso, que combina com que cartão, que combina com que chocolate, que combina com que bichinho de pelúcia e que combinam com o quanto elas combinaram que podiam pagar, na certa são irmãs escolhendo presente para a mãe. E mais: é bem possível que essa era a primeira vez que elas pagariam pelo presente sem a ajuda do pai. Talvez o pai ainda fosse comprar um presente e dar para elas entregarem à mãe. Talvez ele até pedisse para que elas comprassem o que quisessem para a mãe que ele pagaria. Mas elas queriam sentir o gosto de poder pagar pelo que escolheram.

Tinha também os eventos que ela decorava. Aniversários, batizados, festas de empresas, premiações, bodas, hotéis. Não eram só as flores, mas os vasos, pedestais, cor de tapete, toalha de mesa, arranjo, folhagem, ramalhetes para homenagens, igrejas, salões. Cada tipo de evento pedia um tipo de decoração, uma cor específica, sóbria, alegre, romântica, elegante.

E, claro, tinha os casais. Tinha os arrojados, que queriam materiais diferentes em composições inovadoras, às vezes até sem flores. Os exigentes, que queriam tudo exatamente do jeito que pediam – ela dizia que os arquitetos eram os mais difíceis de atender, porque entendiam de decoração e queriam coisas diferentes, engessando o trabalho dela. Tinha os indecisos, com os quais ela tinha que conversar bastante para entender o tipo de relacionamento e dar uma direção para as opções que mais combinariam com eles. Os casais que iam separados, ela para escolher tudo e ele para pagar. Os casais que levavam a mãe, a sogra, a irmã, e cada escolha virava uma festa – ou uma discussão. Aqueles que não ligavam muito para tantos detalhes porque estavam muito apaixonados para enxergar alguma coisa além deles mesmos. E aqueles que queriam saber de todos os detalhes porque, afinal, uma festa de casamento mostra para a sociedade o quanto eles estão investindo neste relacionamento.

Tinha as mães dos casais que opinavam, exigiam, evitavam participar, apoiavam, reclamavam, pagavam, concordavam, discordavam, entendiam de tudo, não entendiam de nada.

As noivas calmas, nervosas, delicadas, espontâneas, desajeitadas, refinadas. Os noivos impacientes, participativos, carinhosos, ausentes, compreensivos.

Era essa combinação de clientes e situações diferentes que, junto com a delicadeza que se instalara naquela alma e a vivacidade que seu olhar demonstrava, que deram à dona da floricultura essa sensibilidade de prever algumas coisas. E quando aquele casal entrou pela primeira vez em sua floricultura dizendo que queria saber de decoração para o casamento deles, ela abriu um sorriso e convidou os dois, que tinham levado suas mães junto para ajudar a dar opinião, a subir as escadas e conversar com ela em seu escritório.

Eles subiram, conversaram com ela por mais ou menos meia hora. Já tinham algumas ideias, pediram outras a ela, e, trocando olhares confidentes, escolheram tudo tranquilamente, sem aparentar dúvida, sem nada tendo que descer goela abaixo de nenhum dos dois, com todas as opiniões ouvidas e ponderadas. Carinhosamente. Juntos. E no fim da conversa, com tudo quase certo, a dona da floricultura sorriu mais uma vez e disse aos dois: - Só de olhar, eu sei quando um casamento vai dar certo. E o de vocês, com certeza, só pode ser feliz, porque vocês são exatamente assim, feitos para dar certo.

Hoje, 30 anos depois, a noiva ainda conta essa história com o mesmo brilho no olhar com que segurou um buquê que a dona da floricultura fez para ela. E o noivo escuta essa história com o mesmo olhar carinhoso com que a olhava enquanto ela passava pelo corredor que a dona da floricultura decorou.

14.9.11

I can’t control my fingers, I cant’t control my brain.

Dispenso o sedativo e confesso que o título está invertido. Primeiro tentei controlar minha cabeça, e não consegui. Com a cabeça em total descontrole, este post é a prova de que falhei em controlar meus dedos. Mas Ramones dispensa comentários.

Claro que houve um período longo em que eu me mantive limpa. Nem precisei de tratamento, só parecia que eu não precisava mais dessas drogas de palavras, então não escrevia mais. Simples assim.

Até que, de repente minha cabeça começou a ficar perturbada de novo. Tentei não dar bola, fingir que não era comigo, que eu conseguia ser mais forte. Juntei todas as referências de auto-ajuda que tive saco de ler, mas quanto mais eu tentava contrair a síndrome da Polyana, mais irritada eu ia ficando. Conforme eu me agarrava a qualquer fio de esperança, mais nós iam se formando.

Aquelas tais pulguinhas que insistem em se instalar atrás das nossas orelhas foram se manifestando. Ora um, ora outra... até que todas começaram a gritar juntas, bem alto, e não era bem atrás da minha orelha, mas exatamente naquela curvinha acústica que faz a gente ouvir melhor, sabe?

Depois vieram meus demônios. Um de cada vez, chegando de mansinho, com cara de anjo, mas cheios de más intenções. Jogando com a minha mente, brincando com a realidade, flertando com meus defeitos...

Mas, mesmo com as pulgas e os demônios, eu ainda consegui me controlar. Tive noites bem difíceis, é verdade, tentando dormir enquanto algumas palavras, e até frases inteiras, ficavam rondando meus pensamentos. Comecei a pensar que uma recaída talvez não fosse tão ruim assim. Mas fui forte.

Fui muito forte. Até que aconteceu o que não podia. No fundo, eu sabia que era inevitável, que era só uma questão de tempo. Não sabia ao certo quanto ia demorar, quanto eu ia aguentar. Só tinha uma certeza inconfessável de que ia acontecer de novo. E aconteceu: vieram as pessoas.

Suas ideias, suas palavras, suas atitudes, suas desculpas, seus silêncios, suas caras e bocas, suas histórias, seus ensinamentos, suas qualidades, seus defeitos, seus desejos, suas decepções, seus rancores, suas saias-justas, suas piadas, seus trabalhos, seus orgulhos, suas perfeições. E eu fiquei só com meus dedos formigando, quase usando a força física para controlar esses 10 malditinhos. Só que eles eram 10, e eu uma só, com a cabeça já sem controle. Aí foi impossível continuar sem escrever aqui.

Meu nome é Marcela, tenho 30 anos, e estava limpa havia 1 ano, 7 meses e 18 dias.
Mas agora estou de volta.

Obs: tenho que fazer um agradecimento especial às pulgas e aos demônios. Obrigada por não me abandarem. Com vocês me sinto mais viva, mais eu.