29.7.08

Um dia...

Outro dia eu saí mais tarde do trabalho, às 21h. Quer dizer, como eu saio todo dia mais tarde, era horário normal de eu sair, mas mais tarde do que deveria.

E ia voltando a pé para casa, não por gostar de fazer exercício ou querer levar uma vida saudável no pouco tempo livre que me resta, mas simplesmente porque é perto demais para usar o carro, quando de repente um sujeito estranho, com a mão debaixo da blusa, me parou e disse para eu passar tudo que eu tivesse na bolsa, discretamente para ninguém perceber.

Em frações de segundo, eu fui da perplexidade de ser assaltada em plena luz de uma das avenidas mais movimentadas da cidade, a não mais que 100 metros de um ponto de ônibus cheio de gente, à completa indignação. E do alto da minha irritação, sem nem pensar em segurança, eu olhei bem pra cara do desgraçado que estava na minha frente e disse, com minha voz que não é baixa:
- Meu amigo, você acha mesmo que vai levar alguma coisa de dentro da minha bolsa?

Percebi que ele ficou meio perdido. Acho que ele pensou que eu ia ficar apavorada, talvez até esperasse que eu tentasse sair correndo. Mas nunca tinha lhe ocorrido a possibilidade de eu estar vivendo um dia de fúria.

Não dei tempo para ele se recuperar da surpresa.
- O que você acha que eu estou fazendo a essa hora na rua? Com essa cara de acabada, com roupa de escritório? Eu estava trabalhando! Faz 13 horas que eu estou enfurnada num escritório. 13 hooooras! Ontem foram de-zes-se-te horas. Você acha mesmo que eu tenho tanta grana que valha a pena me assaltar? Não, meu amigo! O máximo que eu tenho é cansaço e um calhamaço de serviço que eu ainda tô levando pra casa, pra ver se hoje eu pelo menos consigo passar roupa pra ter com quê ir trabalhar mais amanhã.

O cara estava parado, perplexo. Não parecia entender o que estava acontecendo. Foi abaixando a mão vazia que estava por baixo da camiseta e tentou até se desculpar, mas eu não deixei. Ele tinha que ouvir aquilo.

- Quanto você já levou essa noite assaltando quem passa? Quanto? Provavelmente mais do que eu no dia inteiro. Eu é que devia assaltar você.

Concluído meu rompante, saí andando. Passei pelo tal rapaz pisando firme, bufando, com cara de brava. Ah, tenha dó! Vai assaltar a puta que pariu!

Então eu ouvi alguém andando atrás de mim e falando, com um tom de receio:
- Moça... Ei, moça...

Agora a surpresa era minha. Aquele desgraçado que tinha acabado de tentar me assaltar e levado uma puta desabafada na cara, ainda tinha a pachorra de vir falar comigo.
Virei com cara de sono e grunhi um “hã”.

E ele, todo cuidadoso, perguntou se eu não queria tomar uma cerveja num bar perto dali. Por coincidência, um bar que eu costumo ir com alguns amigos. Pensei que esse filho da mãe até que era gente boa, e acho que minha expressão denunciou meu pensamento, porque ele emendou, sorrindo:
- Cerveja é a melhor coisa pra quando a gente tá puto da vida.

Simpático o rapaz. Comecei a achar que talvez ele tivesse razão e resolvi ir andando até o bar, sem responder pra ele, pra não dar o braço a torcer. Mas ele entendeu, sorriu de novo e veio andando meio correndo até chegar do meu lado.

No caminho não falamos nada, mas no bar ele me disse que tinha saído do emprego àquela hora também e estava cansado daquela ladainha de chegar em casa só para dormir, e não dormir direito, e acordar perdendo hora, e trabalhar de novo, e pagar academia sem fazer uma aula... E que aquele seria seu primeiro assalto. Então, concluiu morrendo de rir, que tudo era tão ridículo que mesmo quando ele chegou ao ponto máximo do absurdo e resolveu tentar assaltar a primeira pessoa que passasse pela frente, não deu certo. Nem aquilo dava certo! E ele estava aliviado por isso.

E eu concluí que, na minha existência tão ridícula quanto à dele, nem mesmo quando eu chego ao máximo do absurdo e enfio o dedo na cara de um palhaço que está querendo me assaltar, eu mudo alguma coisa no mundo. Mas eu também estava aliviada por não ter falado tudo aqui para quem merecia, mais não ia ouvir.

E assim tomamos algumas cervejas, rimos, e fomos embora, cada um pro seu lado, se sentindo meio idiota, mas com uma leve sensação de desabafo e um pouco das mágoas afogadas na mesa do bar.

22.7.08

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Nada desce melhor, depois de um longo dia de trabalho, que uma cervejinha.
Para a ansiedade, a sugestão do chef é chocolate.
Com a pressão do dia-a-dia vão bem balas, café e chicletes.
Se a pressão aumentar, algumas trufas podem incrementar o cardápio.
E elas podem ter recheio de cereja, morango, maracujá ou nozes.
Para as noites de trabalho, pizza.
Para as madrugadas de trabalho, bolacha.
Depois de uma discussão, batatinha.
Na hora de afogar as mágoas, caipirinha, sem dúvida! E não só uma.
O tira-gosto ideal para preparar o estômago para a preocupação são as porções.
Porção de queijo, azeitona, salaminho e croquete.
E se o prato principal for um sapo, uma boa sobremesa pode ser um pote de sorvete.
E assim a gente vai dando sabor ao que a vida nos reserva, sem a preocupação de reservar vida para outros sabores que podem aparecer.

14.7.08

Só mais um dia

O dia começou cedo, às 4h37, quando ela acordou pensando naquele trabalho que não tinha conseguido terminar no dia anterior, mesmo tendo ficado no escritório até depois da meia noite. E o pior é que as 3 últimas semanas tinham sido assim.

Era tanta coisa que ela nem se lembrava mais do que tinha passado por suas mãos. Só se lembrava do café horroroso, coado logo cedo e deixado naquela garrafa térmica gigante o dia inteiro, e que ela tomava aos copos, o dia todo, entre as reclamações do estômago que já não agüentava mais.

E ela pensava que precisava dormir porque quando acordasse teria que terminar aquele trabalho interminável, e quanto mais ela pensava que precisava dormir mais o trabalho crescia. E conforme o trabalho crescia, aumentava a dor de estômago só de pensar que, sem dormir direito, ela teria que se valer daquele café horrível de novo, o dia inteiro de novo. E a cama começava a fica pequena, e os carros na rua já faziam muito barulho. E por um momento uma questão quase filosófica afastou o trabalho de sua cabeça: Carros na rua? Às 5h da manhã? Pelo amor de Deus, quem anda de carro às 5 da manhã no meio da semana? E nessa hora ela pensa: “Ainda bem que eu só entro às 8h. E ainda tenho sábado e domingo de folga.” E é esse pensamento que a embala para suas últimas duas horinhas de sono daquela noite.

Quando o despertador toca, o primeiro sentimento do dia é a raiva. Raiva por não ter dormido durante todo aquele tempo no meio da noite em que ficou, improdutivamente, pensando em tudo que ela tinha que fazer agora que queria dormir mais. E depois da raiva um suspiro a empurra pra fora da cama, e ela quase rasteja até o banheiro pensado-se a mais completa e resignada idiota do mundo.

E, apesar de o dia se arrastar, o relógio parece acelerar, e com cafés e suspiros, e até algumas boas idéias, ela oscila entre o sorriso de quem acabou de ler um livro de auto-ajuda e aquele outro sorriso de quem descobre que o segredo da vida é simplesmente a desilusão. E um outro sorriso ainda aparece em seu rosto quando ela pensa que engraçado seria se ela se levantasse e fosse embora, assim, sem dizer uma palavra. Esse sorriso se alarga quando ela percebe o poder que tem. Quando nota que ela, sim, é que está acima disso tudo por perceber que tudo isso a sua volta é superficial, que o que vale mesmo é o que ela pensa, o que sabe, o que leva dentro de si. E o que tem dentro de si é muito maior do que aquilo que as pessoas comuns vêem, do que o que as outras pessoas desejam. Nossa, como ela é maior que tudo isso!

Triunfante com sua aguçada percepção, ela se levanta a vai pegar mais um café para continuar o seu trabalho. Trabalho que parece simples, mas só aos olhos de quem é leigo, que não percebe as sutilezas do dia-a-dia, o refinamento que ela empresta às coisas banais, a delicadeza com que compõe cada traço. E assim passa a desenhar seus próximos traços, porque seu trabalho é muito mais que um simples trabalho. É quase uma arte. E mais arte ainda porque não é simplesmente deixar fluir a inspiração, é fazer tudo que ela sabe dentro dos prazos, de acordo com os pedidos.

E é exatamente isso que ela vai fazer mais uma vez até de madrugada, tomando café, antes de ir dormir e acordar pensando em tudo que vai ter que fazer no dia seguinte de novo: um trabalho que ela desenvolve como ninguém, e, no fim das contas, ela sabe, para ninguém.

7.7.08

Personalidade

Eu gosto das coisas assim:
Preto no branco.
Especialmente se for foto, que fica mais bonito.
Mas se for texto, pode ser colorido.

Eu gosto de adoçante no café.
Mas só duas gotas, pra não ficar amargo.
De vez em quando pode ser açúcar.
E também fica bom com rapadura.

Eu adoro um bom drama.
Pra assistir e pra fazer.
Mas também sou boba e rio de tudo.
Acho que ainda não sei meu lugar no mundo.

Eu tenho medo de ficar sozinha.
De bicho, de escuro, de ET, de tudo.
Tenho medo mesmo de perder que eu amo.
E acho que isso vai aumentando com os anos.

Eu queria ser mãe.
Engordar, parir, acordar de madrugada.
Pensando bem, é tudo mentira.
Eu gosto mesmo é de ser filha.

Eu quero é ir embora.
Morar em lugares diferentes.
Mas só de pensar já dá saudade.
E fica no sonho cada viagem.

Todo dia eu acordo sabendo que eu sou.
No almoço, me sinto perdida.
No fim da tarde, tenho certeza que não sei.
E na hora de dormir, já mudei.

2.7.08

Solidão

O dia foi foda. E, graças a Deus, ele não tinha mulher nenhuma pra pegar no pé quando chegasse em casa mais tarde que o habitual por ter ido tomar cerveja com os amigos do trabalho e espairecer.

A cerveja e uns cigarros eram tudo que ele precisava. E um pouco de sexo pra relaxar. O melhor é que, solteiro convicto, ele podia ter o sexo que quisesse, variar o tipo de mulher, e ainda saía mais barato que o sexo “grátis” de namoradas, como ela gostava de lembrar para provocar a inveja dos coitados que já tinham vestido o cabresto. Nada de dor de cabeça, nada de amorzinho pra lá, benzinho pra cá, ficar abraçado antes de dormir. Não. Pra relaxar é preciso um bom sexo e só. Virar para o lado e dormir.

Mas antes, a cerveja com os amigos. Conversa, reclamações, sinópses do futebol, grandes idéias, a secretária, aventuras sexuais alucinantes... As mesas do bar vão se esvaziando, o garçon batuca os dedos no balcão à espera do pedido da saideira, um dos amigos boceja e lembra que ainda é terça-feira. Enfim, é hora de procurar com quem relaxar. E ele já sabe onde ir.

Não se importa muito com a beleza. Claro que é bom ter alguém bonito do seu lado, mas ele só queria se satisfazer, ninguém ia ver. Na primeira esquina estão duas. Muito vulgares. Um pouquinho mais pra frente tem mais uma. Bonita. Mas ainda não é essa. Tem uma cara estranha. Depois de contornar vários quarteirões daquela área, eis que ele encontra alguém especial.

Ele encosta o carro, ela encosta no carro sorrindo e eles começam a conversar. Enquanto combinam o preço, ele acaricia delicadamente a barriga completamente exposta da moça. Sobe os dedos. Desce. Faz círculos em volta do umbigo. Ela é linda, ele pensa. Ela entra no carro, eles vão para o apartamento dele. No caminho, conversam sobre tudo, ele conta o dia foda que teve.

Já no apartamento, ele faz questão de oferecer alguma coisa para ela beber. Ela faz tudo que ele quer. Ele se diverte, mas quer que ela goste. Depois deita cansado e ainda pede uma massagem. Conforme ela massageia suas costas, ele elogia sua delicadeza, conta mais uma vez sobre o dia foda, faz planos para que o dia seguinte não repita o desastre de hoje, comenta a programação do fim de semana, e, sem perceber, vai se virando, bocejando, abraçando a moça cujo nome real ele nem deve saber e se ajeitando confortavelmente na cama com ela em seus braços, numa silenciosa confissão de que era isso que ele queria e precisava.

1.7.08

Acordo

Antes de qualquer coisa, mas depois de um beijo, ele deixa claro que não pensa em nada sério. Está solteiro e pretende continuar assim.

Com esse aviso, ele se exime de qualquer culpa sobre uma possível paixonite que ela possa desenvolver. Ele passa automaticamente a não ter responsabilidade nenhuma caso ela sofra uma semana depois, quando encontrar outra ali, onde ela estava agora. Ele garante a tranqüilidade de sua consciência caso ela ligue, chore ou mande presente.

Como se uma frase pudesse mudar tudo. Apagar cada detalhe daquela noite. Traduzir o carinho com que ele a tratou para a língua da diversão sem compromisso. Sufocar o suspiro que insiste em crescer no peito dela. Dissipar o cheiro. Afastar qualquer lembrança. Normalizar o ritmo do coração.

Como se aquele aviso fosse uma prova a favor dele contra qualquer acusação de crueldade. Um álibi. Quase uma absolvição do pecado de conquistar alguém que não se quer. Um sabonete dos bons para lavar as mãos.

Como se, naquela hora que ele falava, ela fosse parar e ponderar todos os prós e contras. Definir suas prioridades. Lembrar que ninguém muda ninguém e desistir do que ela já tinha tentado com outros sem sucesso.

Como se, continuando ali com ele, ela estivesse assinando um contrato de uma noite e nada mais. Comprometida em não sonhar com o para sempre.

Como se aquela advertência significasse a segurança de que ela cumpriria todos os acordos subentendidos.

E como se não soubessem disso tudo, com a frase interrompida bem no finalzinho, com outro beijo, eles se entregam.