24.7.13

Cuidado comigo


Cuidado comigo. Cuidado com o que você espera de mim e com o que me pede, porque você sabe que é exatamente o que eu vou entregar.
Você sabe que eu vou estar sempre aqui, para o que você precisar, para o que você quiser. Mesmo que pareça estranho, e até inadequado, depois de tanta história e tanto tempo.
Não me teste, porque eu sou previsível e minha resposta padrão é sim. Talvez a única parte imprevisível de mim seja meu limite, e talvez ele só seja imprevisível para mim, e só porque ainda não cheguei lá. Mas para você...
Eu sei que você me testa e, mesmo sabendo, eu cedo. Talvez porque eu mesma queira testar meus limites. Claro que seria muito mais seguro se não fosse com você. Por outro lado, se não fosse com você não seria um teste eficiente. Pode ser que meu limite seja exatamente o mesmo para você e para qualquer outra criatura do mundo. No fundo, eu duvido.
Só saiba que meus atos falhos são lúcidos. Que é por vontade própria que eu saio do meu plano para seguir o seu. Mesmo que seja por um certo medo infantilóide de ser excluída, ainda assim, é de forma consciente que eu sigo as regras do seu jogo.
Mas não pense que por estar consciente, eu também esteja imune. Não suponha que minha lucidez elimine minha fragilidade. Eu não faço restrições, não imponho condições. Meu único pedido é que tome cuidado comigo.

10.7.13

Porque eu não penteio seu cabelo



Ele tem um brilho tão natural e tão encantador que me hipnotiza e me faz incapaz de perturbar sua natureza. A leveza de suas mechas é a mesma que desejo para seu espírito, e que assim seja também com seu crescimento. Cresça para todos os lados, ocupe todo seu espaço, vá até onde sua cabeça permitir, mas sem perder as raízes.

Desejo que essa bagunça eterna de fios e mechas e meios cachos reflita que você é muito mais essência que aparência, mas que sua essência seja linda e doce como sua aparência.

Claro que cabe a mim manter a cabeleira em ordem, limpar qualquer resquício de sujeira desse mundo e deixá-la saudável, disposta a suar o quanto for preciso e preparada para alguns inevitáveis banhos de água fria.

Também é meu dever aparar as pontas e cuidar para que ela expresse toda sua personalidade, mas permaneça na linha. Afinal, cabelos passam por fases rebeldes e, eu já aviso, às vezes pedem até soluções meio radicais. Mas pode ficar tranquilo, porque mesmo que eu raspe sua cabeça, vai ser com todo cuidado e todo carinho do mundo, para que a juba volte a crescer mais bonita e mais saudável.

Eu acredito que cabelos são feitos para voar ao vento, para refletir a luz do sol, para passar entre os dedos e nos lembrar que são as sensações do dia a dia que fazem a vida valer a pena. Sendo assim, como eu poderia querer pentear o seu?













4.7.13

Misantropia


Ela era muito nova quando descobriu que a convivência com outras pessoas era tão dispensável quanto irritante. Extremamente irritante. Mas demorou muito para realmente abrir mão da tortura social.

Criada à base de uma educação rigorosa, desde menina foi praticamente doutrinada a sorrir e jamais, sob hipótese alguma, gerar qualquer desconforto para quem quer que estivesse conversando com ela, ainda que isso significasse sua mais profunda resignação. Mesmo na adolescência, fase das contestações e rebeldia, a omitir seu sorriso costumeiro era o mais ousado que se permitia tentar.

Emanando uma calmaria quase monótona, ela era a própria imagem da palermice, onde os covardes podem treinar seus ímpetos de valentia sem medo de ter que recuar, onde os maldosos costumam extravasar seu azedume, e onde os grandes e os bons vêm apenas a graça de ingenuidade. Por outro lado, pelo lado de dentro, ela era o caos.

Havia paixão em sua alma. Ela era apaixonada por ideias, por ideais, e também pela própria raiva e insatisfação que sentia com o mundo. Era apaixonada por aquele universo interno onde a ironia e o sarcasmo tinham passe livre, onde discordar era atividade corriqueira e sua verborragia silenciosa beirava a obcenidade. E conforme os anos se passavam e os fracos a espizinhavam, os maus abusavam do seu limite e os fortes e os bons sorriam complascentes supondo sua ignorância, ela se apegava cada vez mais àquela desordem, alimentava aquele tumulto íntimo e se satisfazia. E mais ainda ela se impressionava com a crescente ausência de bom senso das pessoas, e mais se deixava irritar com faltas cada vez menores, e mais ela silenciava e se forçava a sorrir, acumulando amargura. Ela não sabia fazer de outro jeito.
Depois de uma vida inteira entre a tentativa de sobreviver ao caos e a mansidão a que se impunha, depois de velha e calejada, certa de que o mundo e as pessoas seriam sempre iguais, se não cada vez piores, ela decidiu se presentear com a renúncia ao ser humano. Restringiu todo seu contato com outras pessoas ao mínimo necessário para sua sobrevivência, para então poder se entregar àquele mundo de pensamentos onde realmente se sentia à vontade, onde ela encontrava sua plenitude.

O que ela não sabia é que era aquele inferno mundano que alimentava seu paraíso particular. Ela tinha passado sua vida inteira construindo aquele lugar à base de insatisfação não declarada, de conformidade infligida e de desejos, de todas as espécies, reprimidos. Agora, completamente livre de toda agonia que era viver em sociedade, ela não podia nem sentir sua mente esvaziando, seu espírito murchando. E já não se reconhecia mais.

1.7.13

Lembra?



Fala pra mim que você estava naquele café, noite passada. Eu sei que você estava, mas quero ouvir sua voz confirmando, lembrando tudo.

Você me ligou no fim da tarde, eu estava de pijama, disse que estava indo me encontrar onde combinamos e eu ri, porque quando combinamos achei que era só de brincadeira. Mas você estava indo de verdade até o café, eu podia ouvir o trânsito passando pelo seu telefone.

Isso você não sabe, não pode confirmar, mas eu senti uma mistura de medo e alegria porque estávamos prestes a nos encontrar. Tanta coisa pra falar, tanta ansiedade, que eu não lembro como cheguei ali. Aliás, não consigo lembrar de ter ido àquele café antes, apesar de a dona ter me recebido bem e ter conversado comigo como se já nos conhecêssmos há anos. Quem escolheu aquele lugar? Não tem a sua cara, tem a minha, mas realmente não consigo lembrar de já ter estado ali nem de onde ele fica. Quero voltar lá qualquer hora dessas.

Desculpe, preciso pedir uma coisa chata... fala de novo pra mim tudo que você disse ali na mesa, enquanto eu tomava aquele chocolate quente? Eu lembro que a gente ficou se olhando, lembro de você falar e de ouvir sua voz, lembro do som do lugar, estava tocando uma baladinha bem leve, lembro da chuva batendo na janela e do fim da tarde virando noite enquanto a gente estava ali. Lembro que do lado de fora estava frio, mas ali dentro estava bem quente. Engraçado, parecia até um outro país. Lembro que o cheiro era delicioso! Mas não consigo lembrar de uma só frase que você disse.

Por favor, não pense que seja falta de atenção ou de interesse. Não! Acho que eu fiquei anestesiada com todo aquele ambiente aconchegante e por estar com você. Veja bem, eu estava em casa, de pijama, esperando minha mãe chamar para o jantar. Como eu ia imaginar que você ia querer me ver?

Enfim, fico tentando rememorar cada detalhe, cada sentimento, e tudo está muito vivo na minha cabeça, só o que você disse que me foge completamente à memória, e isso está me matando e curiosidade. E isso é estranho, porque eu sempre sei o que você disse, mesmo quando estava em silêncio. Como posso não ter gravado nenhuma palavra? Não faz sentido!

Aliás, pensando racionalmente, não faz sentido você me procurar e querer conversar comigo, num fim de tarde, num café. E não faz absolutamente nenhum sentido o cara que trabalha comigo aparecer de repente e sentar na nossa mesa. Vocês nem se conhecem!

A menos que eu estivesse sonhando... mas não. Eu fui àquele café, eu tomei aquele chocolate quente cremoso olhando nos seus olhos enquanto a chuva batia na janela aumentando o frio lá de fora e deixando o calor lá de dentro mais confortável. Eu senti o timbre da sua voz no meu ouvido, não importa que eu não lembre de nenhuma palavra, eu sei que elas foram ditas. E sei que foi uma conversa boa, porque nós dois sorríamos. Nao foi? Você também lembra? Você também gostou de me ver?

Eu estava sonhando? Não, eu me recuso a acreditar que eu estava sonhando. Mesmo com as falhas de memória e de sentido, tudo aquilo aconteceu. Não aconteceu? Você não me ligou? Não sorriu pra mim? Não gosta de mim ainda? Foi tudo vivo demais pra ter sido sonho. A menos que você tenha sonhado tudo isso também. Você sonhou?

25.6.13

A experiência



Quais verdades íntimas uma pessoa pode esconder e até onde ela iria para mantê-las protegidas?

Para fazer o experimento, o grupo de cientistas precisava escolher a dedo sua cobaia. Em tempos de auto-exposição desmedida, não podia ser alguém digitalmente recluso, senão ficaria impossível descobrir o que de fato era um segredo e o que era apenas resquício de uma pseudoprivacidade daquilo que não está disponível ao mundo, mas que pode ser amplamente discutido em qualquer salão de beleza.

Também não poderia ser alguém público nem famoso, que já tivesse a vida devassada pela mídia, paparazzi e fãs, pois essas são pessoas testadas ao limite continuamente, e que às vezes até se valem da nudez da própria alma.

Então eles escolheram o cara a dedo. O cara tinha perfil e era bem ativo em redes sociais, e, ao vivo, parecia gostar de conversar sobre os mais diversos assuntos, com opiniões e reflexões, mas nunca de forma contundente. Tinha um número razoável de amigos e dificilmente entrava em conflitos. Parecia sempre se desculpar ou se omitir quando discordava do que era tratado. Isso aparentava um imenso potencial de segredos guardados. Quem faz tanta questão de estar bem com todo mundo? Por quê? E o que ele varria pra debaixo do tapete quando omitia seu ponto de vista destoante? O cara era a cobaia perfeita!

Começaram o experimento como manda a cartilha: ficaram amigos do cara. Forçaram uma intimidade a que ele cedeu sem muitas restrições, porque simplesmente não via maldade em ninguém. Era contra seus princípios desconfiar de alguém que nunca tenha dado motivos. E, como amigos, eles perguntaram tudo que podiam pro cara, em tom de curiosidade, embebedaram o cara e falaram dos assuntos mais cabeludos durante sua embiraguez, pediram conselhos, afinal, todos damos conselhos baseados em nossas próprias experiências. Falaram de esporte, de ideologias, de política, de religião, de briga de bar, de trabalho, de mulheres, de projetos, de conhecimento, de vitórias e de derrotas. Mas tudo que conseguiram foi um detalhe ou outro do que eles já sabiam, do que o cara falava e do que eles viam o cara viver.

O time de cientistas, em princípio, formado apenas por homens, já estava desanimado quando uma bela estudiosa do comportamento humano entrou para a equipe e se dispôs a interagir mais intimamente com a cobaia. Munida de todos os aparatos para garantir seu sucesso, ela deu início a um relacionamento com o cara. Falou com ele de amor, de família, de educação, de infância, de relacionamentos antigos, do futuro, de filhos, de filmes, de essência, de desejo, de sabedoria, da vida. Ela aproveitou de todos os momentos particulares, carinhosos e até viscerais para tentar descobrir qualquer segredo, fosse um medo, fosse uma vergonha, fosse uma tara. Qualquer coisa escondida ali entre um instinto e o alicerce de sua formação. Nada. Ela já havia estudado o caso antes de iniciar o contato com o cara, e ele fazia absolutamente tudo exatamente como ela esperava, de acordo com o que havia analisado antes de ir a campo, e isso significava que a experiência estava fracassando, afinal, o objetivo era descobrir o que não era possível saber só à base de observação.

Então, num ímpeto desesperado para salvar seu experimento e seu orgulho, a equipe de cientistas usou seu último recurso: o grande amor mal resolvido do cara.

Enfiaram dedos com unhas compridas em suas feridas para depois oferecer a chance de consertar o que quer que tenha ficado no ar, desfilaram as melhores e as piores lembranças, desenterraram palavras, cheiros, sensações, testaram toda a sua raiva e tentaram todo o seu desejo. Mas a cobaia continuava se comportando dentro do padrão, sem revelar absolutamente nada de novo.

Os cientistas finalmente chegaram à conclusão de que aquele era o cara errado. Ele certamente vivia de acordo com o que pensava e sentia. E foram embora.

O cara, por sua vez, que até então pensava e sentia de acordo com o que vivia, experimentava agora a sensação de não ter vida suficiente para tudo que havia dentro dele.

O psicopata e a bipolar



Ele não tem sentimentos.
Ela é autossuficiente. E carente.
Ele é esperto.
Ela é estudada. E burra.
Ele é manipulador.
Ela é visionária. E cega.
Ele é fagulha.
Ela é fogueira. E lenha.
Ele sussurra.
Ela ouve. E grita.
Ele arquiteta.
Ela pensa que pensa. E tem certeza.
Ele quer ser.
Ela é. Mas não sabe o que é.
Ele é adolescente.
Ela é adulta. E infantil.
Ele é imoral.
Ela é transparente. E suja.
Ele disfarça bem.
Ela disfarça melhor. Mas se entrega por menos.
Ele é traído pelo instinto.
Ela trai princípios. E atrai imprudência.
Eles se completam.
Vivem juntos. Ajem juntos. Comemoram juntos.
E vão se foder juntos no final.

15.1.13

A virtude da Maria Sem-Vergonha



Enquanto a Rosa foi escolhida para simbolizar a beleza e a orquídea, para representar a elegância, a Maria Sem-Vergonha com sua despretensão se espalha pelas sarjetas da cidade e provavelmente nunca será tema de música.

Em vez de se guardar e desabrochar apenas em grandes eventos ou ocasiões especiais, ela se oferece o ano inteiro para qualquer um.

Sem nenhuma ostentação nem opulência, ela se presta a enfeitar as ruas mais cinzas e os becos mais isolados, colorindo a vista de quem anda cabisbaixo.

Sua completa ausência de timidez permite que a Maria Sem-Vergonha tome para si o lugar que bem entender, sem nem pedir licença, e sua delicadeza garante que isso ainda arranque sorrisos dos que a observam.

Como ninguém quer uma sem-vergonha, essa Maria goza da mais pura liberdade longe dos vasos. E, apesar do peso que a autonomia representa, ela consegue manter sua leveza, continuar florindo, mesmo depois das tempestades, e estar sempre na companhia de gentis borboletas amarelas.

Enquanto o mundo se ocupa em valorizar o belo, o raro, o exclusivo, a Maria Sem-Vergonha é uma verdadeira ode à simplicidade.